sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Trente-sept


Nunca conhecera, até o dia que esbarrou com o moço forasteiro na mercearia, um francês de verdade; talvez os modelos estampados nas propagandas da vogue ou elle seriam. Até o dia em que esbarrou com o moço moreno de olhos azuis na mercearia, não conhecera um francês de verdade. Vira um ou dois filmes do Jeunet, quando na capital, a prima a levara no cinema, mas en personne, não conhecia.

As aulas de francês custam ao pai o equivalente a meio salário pago a empregada doméstica há anos na família. Luxo não é, necessidade sim. Dizer ao pai a intenção de ter aulas com um moço forasteiro tomou-lhe uma semana de preparação e simulação de diálogos possíveis. 

O parisien, agora atração local dos desocupados e curiosos, ganha então uma aluna. Segundas e quintas-feiras, sempre após o ave maria na igreja da praça central, as aulas acontecem, na sala do pequeno apartamento feita em sala de aula. Graciosamente vestida e sempre pontual, acomoda-se numa cadeira , presta atenção em todo e qualquer gesto do professor.

Todas as amigas da mocinha sabem das aulas e à prima da capital, escreve cartas com tentativas audaciosas de escrever frases inteiras em francês. Colônia, não usa mais, nem alfazema carrão, só eau de toilette. E é francês, na mesa, no banho e na cama. Como era gostoso meu francês.

Um dia, melhor amiga diz ficar sabendo, os franceses não se limpam e as moças não depilam as axilas. O velho do armazém espantando diz ao pai da moça, os franceses comem lesmas e possuem hábitos estranhos, deixam um queijo mofar até azular e aí comem. É um horror.

O sotaque engraçado e envolvente sempre faz à moça, cócegas, mesmo quase dois metros de distância um do outro. Suave, suave. Dois meses inteiros até agora, aulas semanais e lábios apertados. O francês se enfadou, resolveu voltar pra casa. Mocinha chorou, chorou, choraria em francês se possível.

Ficou amarga, bruta, áspera, mandona.
Totalitária, inclusive.
Resolveu um dia, incerto, estudar alemão.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

36


É manhã bem cedo, cedo fresco. Uso uma das várias camisetas de super-heróis que tenho, uma bermuda de tecido sintético, pés descalços. A mochila carrega minha sobrevivência de dois dias, fora, meu par de tênis bem gastos, pendurados pelos cadarços. Balançam, parecem se despedir. Estilo despojado me cai bem, mas não estou despojado, acabei de acordar e o caimento não foi propositalmente organizado à parecer despojado. Acabei de acordar.

(Pés descalços não são problema pra mim. São oito passos do carro à porta, quarenta e seis até a padaria e cento e sessenta e oito até a universidade.)

Na tarde anterior algo me consome, sofro. Engasgo. Te amo eu disse também te amo ouço de volta. Encontramos um ao outro várias vezes no mesmo dia, na mesma casa. Por um dia de quarenta e oito horas. Esbarro, me carrega, roda, me diz te amo, de novo, de novo. Meu medo se verte em água, salgada.

(Raramente tenho medo, quando tenho, choro.)

Eu disse que amo muito, me disse o medo é do bom acabar e, e naquele momento chorava por uma perda, me disse, não iria acontecer. Choro agora, digo eu, choro e tenho medo. Choro igual menino. Me abraça, diz que fica bem. Acredito. Acordamos cedo, bem cedo. Tomamos café, mala pronta desde ontem, ontem antes do banho, não o meu. Acordamos de novo na mesa do café. Um abraço. Com força leve. Vestimos roupas.

O mar então secou. Ri, riu, rimos. Remos. Partimos.